Araguaia: um rio de oportunidades, mas até quando?
Maior seca dos últimos 50 anos e crise climática acende o alerta para a importância da bacia.
Samuel Barrêto e Júlia Mangueira*
É no Cerrado, localizado na parte central do Brasil, que pulsa oito das 12 regiões hidrográficas do país. Considerado o berço das águas, suas bacias abastecem pelo menos 25 milhões de pessoas. Ali também nasce o rio Araguaia, um dos últimos grandes rios tropicais de fluxo livre, que desemboca no rio Tocantins, conectando o Cerrado e a bacia Amazônica, da qual também faz parte. O Araguaia chega a transportar mais de seis milhões e 500 mil litros de água por segundo ao longo dos mais de 400 municípios dos quatro estados que percorre – Goiás, Mato Grosso, Tocantins e Pará –, impactando no desenvolvimento econômico de mais de 100 mil produtores rurais e de milhões de pessoas, entre povos originários, regiões metropolitanas e rurais.
Seria justo reconhecer a bacia do Araguaia como o coração do Brasil, devido ao seu importante papel na distribuição da água no território brasileiro. Mas, infelizmente, esta fonte, que não é inesgotável, está ameaçada. Nos últimos 40 anos, o rio perdeu 40% de sua vazão, segundo estudo Universidade de Brasília (UnB)**, mostrando a correlação entre a redução de superfície de água com a conversão no uso do solo e o aumento da demanda para a produção agropecuária na região, que também tem crescido. Esta expansão gera ganhos importantes, mas é necessário criar estratégias para conciliar os diferentes usos de terras e águas num cenário mais desafiador e agravado pelos impactos dos extremos climáticos, cada vez mais visíveis. Secas mais severas e chuvas mais irregulares geram um aumento de pressão por esta demanda, seja por meio do desmatamento ou da quantidade de áreas irrigadas. Sem um planejamento integrado, que leve em consideração esse novo cenário e os impactos das atividades humanas, estamos colocando em risco a disponibilidade da água no Brasil e toda a sua biodiversidade. Assim como, elevando o risco de perenidade dos negócios.
No último dia 28 de julho, o rio Araguaia atingiu, em São José das Bandeiras, norte do estado de Goiás, o nível mais baixo dos últimos 50 anos para o mês de agosto, de acordo com dados divulgados pelo Sistema Hidrológico do Serviço Geológico do Brasil (SGB). Historicamente, a região apresentava períodos bem definidos de seca e de cheia, que duravam praticamente seis meses cada. Na seca, bancos de areia surgem ao longo do rio e, na cheia, as chuvas trazem de volta o fluxo de água. Contudo, o rio Araguaia tem cada vez mais dificuldade em recuperar seu fluxo no período de chuva, afetando também a qualidade da água. Os impactos acendem um alerta principalmente para as comunidades locais e povos originários que pescam, criam animais ou plantam roças nas ilhas e margens do rio e que podem ficar mais vulneráveis a esse cenário. É também um panorama preocupante para a produção agrícola na região, que precisará de recursos hídricos para viabilizar a produção ao longo dos anos.
Este contexto reforça a importância das agendas de proteção, conservação e fomento ao desenvolvimento econômico sustentável local subirem para o topo da lista de prioridades, reunindo os poderes público, privado e a sociedade. Para criar uma visão compartilhada para a bacia, já que todos que vivem e convivem com o Araguaia precisam de um rio saudável para os seus diferentes modos de vida, é de extrema importância articular o desenvolvimento de soluções integradas a longo prazo, sem deixar de lado os aspectos e demandas socioculturais, econômicas e de governança das águas. Não há como combater a perda da biodiversidade e da sociobioeconomia (como a pesca, por exemplo) sem, ao mesmo tempo, combater as mudanças climáticas.
Para isso, é fundamental mapear – ao longo dos cerca de 2.100 quilômetros percorridos pelo rio Araguaia até desembocar no rio Tocantins – e reunir todas as peças desse quebra-cabeça, classificando por etapas as áreas prioritárias para o investimento e implementação de ações de conservação e manejo. Um percurso que agora pode ser traçado com mais clareza graças ao estudo inédito Blueprint Araguaia, desenvolvido pela The Nature Conservancy (TNC) Brasil, com o apoio de mais de 60 agentes, entre especialistas em biodiversidade e gestão de recursos hídricos, representantes do setor público, privado, povos indígenas e comunidades tradicionais. Trata-se de um portfólio de ações que analisa os desafios e traz um amplo cenário de estratégias focadas nos quatro estados que cruzam a bacia.
Nele, foram identificadas as áreas mais relevantes, ecologicamente íntegras e funcionalmente conectadas, que devem ser consideradas no planejamento público destes estados. O resultado é um Plano de Conservação que traz características ambientais atreladas a estratégias factíveis de conservação. Um modelo que pode – e deve – ser usado de diferentes formas, dependendo das prioridades e prazos dos governos e de outras partes interessadas, de forma a orientar o investimento e a gestão de recursos hídricos.
O Blueprint é uma “planta baixa” de planejamento para a conservação, apresentando uma oportunidade de integrar a produção rural ao bem-estar social, mas não só isso. Também traz uma avaliação de potenciais futuros cenários de desenvolvimento, gerando subsídios técnicos para que o processo de tomada de decisões que influenciarão na sustentabilidade da bacia, como, por exemplo, as áreas de irrigação, seja feito com base na melhor informação disponível.
O estudo já vem sendo utilizado, por exemplo, pelo Grupo de Trabalho Araguaia, do Ministério Público Federal, através do apontamento das áreas do rio Araguaia que precisam ser conservadas para a formação de um corredor ecológico que mantenha a conectividade do Araguaia e principais tributários atrelado a uma paisagem terrestre que mantenha o caminho de fauna, como a onça-pintada. Dessa forma, o material aponta que os trechos ao longo do Rio das Mortes, no Mato Grosso, até o encontro do rio Araguaia com o rio Tocantins, no Pará, são áreas de extrema relevância ecológica e social e, por isso, precisam de estratégias que regulamentem e protejam o canal principal do rio.
Cenário posto, a pergunta é: você já tinha parado para pensar na complexidade de um plano de conservação ambiental e gestão hídrica? É por isso que chamamos esse estudo de “guia prático”, porque consegue cumprir esta importante primeira etapa do processo. Com uma parte desse quebra-cabeças resolvido, agora o desafio muda de lugar e está a cargo da implementação e desenvolvimento de acordos locais, regionais e nacionais para uma gestão territorial mais sustentável e justa.
*Samuel Barrêto é biólogo, ambientalista e gerente nacional de Sistemas de Água e Alimentos da TNC Brasil e Júlia Mangueira é diretora para o Cerrado da TNC Brasil