Conservação dos rios da Amazônia: soluções resistem ao teste do tempo quando refletem valores e anseios
Por Márcio Sztutman, Diretor Executivo da TNC Brasil
Os dados são inquietantes: pesquisa recente publicada na revista Science revelou que as chamadas “mega secas”, ou seja, períodos estiagem extrema que duram pelo menos dois anos, têm se tornado mais frequentes. Entre 1980 e 2018, foram mais de 13 mil eventos desse tipo em todo o mundo e o Brasil, um dos países com maior reserva de água doce do planeta, não foge a esse cenário. Em 2024, segundo a Organização Meteorológica Mundial (OMM), o Brasil registrou 10 eventos climáticos extremos, sendo 3 sem precedentes.
Como anfitrião da COP30 e um dos países com maior vantagem comparativa quando o tema é a abundância de recursos naturais, o Brasil precisa liderar pelo exemplo de bom uso e de conservação de suas riquezas vindas da natureza. E, por vezes, o caminho para a solução está muito mais perto do que imaginamos. No ano passado, um levantamento do MapBiomas mostrou que a conservação das florestas nas terras indígenas é quase total. Entre 1985 e 2023, apenas 1% da vegetação nativa nessas áreas foi perdida.
Outra pesquisa, realizada pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), descreveu uma pequena amostra com cinco exemplos de florestas protegidas devido ao esforço dos povos originários e comunidades locais. De maneira poética, o levantamento chama de hope spots (pontos de esperança, em tradução livre) as regiões onde comunidades locais e cientistas trabalham coletivamente em prol da conservação. Os exemplos levantados revelam uma diversidade de abordagens, desde o manejo comunitário do Pirarucu até a documentação de sítios arqueológicos na Terra Indígena do Xingu, identificando sua ocupação desde 1250.
No mês em que comemoramos o Dia dos Povos Indígenas, é fundamental trazer à tona a relevância destes grupos para o cuidado com o meio ambiente, combate ao aquecimento global e, consequentemente, às secas. Um ótimo exemplo vem do Equador, onde a The Nature Conservancy tem trabalhado com representantes de 33 comunidades Waorani e 47 comunidades Kichwa para implementar uma estratégia inovadora de proteção territorial.
Em 2022, as comunidades estabeleceram um modelo de conservação para 371.380 hectares de terra e água (equivalente a duas vezes e meia o município de São Paulo), abrangendo os rios Nushiño, Curaray e Villano, protegendo os seus fluxos naturais, a qualidade da água e a conectividade entre ecossistemas aquáticos e terrestres. Esta iniciativa visa proteger 1.860 km desses três rios de ameaças como mineração e desmatamento, ao mesmo tempo em que fornece conectividade para 200 espécies de peixes, criando um grande corredor de água doce. À medida que representantes das duas etnias lideram o desenvolvimento do mecanismo para proteger e monitorar o sistema fluvial, discussões jurídicas estão em andamento no Equador para reconhecer formalmente estes instrumentos de conservação de água doce em territórios de populações originárias.
Em terras brasileiras, a lógica da liderança das populações tradicionais em torno do cuidado com a água também vem sendo aplicada. Uma importante iniciativa vem ocorrendo na Bacia do Tapajós, que tem aproximadamente 500 mil quilômetros quadrados (equivalente ao tamanho da Espanha), divididos na Amazônia, majoritariamente, e no Cerrado. Esta bacia engloba 65 municípios e 1,4 milhão de pessoas, incluindo comunidades tradicionais e 10 diferentes etnias indígenas. Entre Terras Indígenas e Unidades de Conservação, tanto federais como estaduais, são mais de 70 áreas legalmente reconhecidas.
Por lá, grupos da sociedade civil, em parceria com comunidades locais, ribeirinhas e povos indígenas, vêm contribuindo com o planejamento estratégico e sustentável do território, criando oportunidades de inclusão econômica, integradas com a conservação ambiental e o bem-estar humano, por exemplo, por meio do projeto Águas do Tapajós. Em colaboração com os movimentos sociais e academia, a iniciativa contribui para o desenvolvimento local, aumentando o conhecimento sobre o uso sustentável da biodiversidade de água doce, dos recursos aquáticos e a conservação do rio Tapajós como um todo. Um exemplo dos benefícios gerados é o Acordo de Pesca, forma de governança e gestão participativa das comunidades sobre os recursos pesqueiros. Trata-se de um instrumento legal para regulamentar a pesca em determinados ambientes aquáticos, no qual as regras são formuladas e discutidas pelas próprias comunidades ribeirinhas. Para tanto, são levados em consideração tanto o conhecimento tradicional sobre a ecologia e reprodução das espécies como a dinâmica social das comunidades locais que fazem uso dos recursos naturais. A união entre o conhecimento tradicional das comunidades ribeirinhas e o conhecimento científico tem contribuído para a conservação de 5.000 km de rios e igarapés, abrangidos sob os Acordos de Pesca nesta região, gerando impactos positivos para os recursos pesqueiros e a qualidade de vida local.
Todos nós temos muito a ganhar com a união entre o conhecimento tradicional e a ciência, especialmente quando reconhecidos por instrumentos de políticas públicas. Os trabalhos coletivos de conservação das águas da Amazônia, tanto no Equador quando no Brasil, são exemplos que podem – e devem – ganhar escala e que, inevitavelmente corroboram a máxima de que a conservação ambiental é muito mais eficiente e benéfica quando feita em colaboração com aqueles que são, reconhecidamente, guardiões dos recursos naturais.
Publicado originalmente em Um Só Planeta
29 de abril de 2025
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