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Desmistificando as “salvaguardas socioambientais” de REDD+

Roberta Cantinho e Karen Oliveira

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MANGUE TRANSFORMADO EM DESERTO Mudanças diárias que surgem com os ventos encobrindo o mangue de pó, © Elaine Paiva/Concurso de Fotos TNC 2022

A agenda de clima traz um apanhado de siglas e jargões que, muitas vezes, tornam o tema complexo até mesmo para quem atua na área. Não temos como fugir do assunto, já que temos sentido cada vez mais os impactos das mudanças climáticas e precisamos entender como funcionam suas negociações para exigir de nossos líderes e negociadores um posicionamento para enfrentar a questão. Um dos instrumentos da agenda de clima que vem sendo discutido há alguns anos é o REDD+. Apesar de muitas controvérsias, o REDD+ ainda tem sido visto como um potencial instrumento para proteger e aumentar as florestas de países em desenvolvimento, especialmente por recompensar seus guardiões – povos indígenas e comunidades tradicionais. O REDD+ ainda pode ser alvo de negociação durante a COP 27, ou Conferência das Partes, que acontece em novembro no Egito, visto que existe a possibilidade de considerá-lo na transferência internacional de resultados de diminuição de emissões de gases de efeito estufa. Ou seja, os créditos de REDD+ gerados em países em desenvolvimento poderiam ser utilizados por países desenvolvidos na compensação de suas emissões.

O REDD+ é um instrumento da Convenção do Clima criado em 2005 para compensar financeiramente países com grande quantidade de florestas pela redução de emissões de gases de efeito estufa associadas ao desmatamento e à degradação florestal, assim como pela manutenção, conservação e aumento dessas áreas. Desde então, muitos projetos e programas de REDD+ são promovidos por governos nacionais e locais, organizações da sociedade civil ou empresas em vários países. Devido à ausência de regulamentações do tema, muitas preocupações quanto aos potenciais riscos socioambientais associados às atividades de REDD+ vieram à tona, especialmente o possível desrespeito aos direitos de povos e comunidades tradicionais.

Por isso, há uma forte pressão e critérios cada vez mais rigorosos dos pagadores por resultados de REDD+ para que toda a negociação que envolva florestas em países em desenvolvimento respeite os direitos e a cultura desses povos e comunidades tradicionais. São as chamadas “salvaguardas socioambientais”.

De maneira geral, uma “salvaguarda” representa um conjunto de medidas que garantem a integridade e preservação de algo. Ou seja, ela pode estar atrelada a qualquer iniciativa que impacte uma comunidade positiva ou negativamente, direta ou indiretamente. Com o objetivo de potencializar os impactos positivos e reduzir os impactos negativos relacionados ao REDD+, foram criadas, em 2010, as salvaguardas de REDD+, em Cancun (por isso, muitas vezes se referem a elas como “Salvaguardas de Cancun”). São sete diretrizes relativas à consistência dessa iniciativa com ações nacionais e internacionais – por exemplo, legislação e governança de um país –, ações para evitar o deslocamento do desmatamento – de forma que a proteção de uma área não faça com que outra seja desmatada –, bem como o respeito pelo conhecimento e direitos de povos indígenas e comunidades tradicionais e sua efetiva participação no processo de construção de uma iniciativa de REDD+.

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Com a redução de 90% do desmatamento entre 2004 e 2014, o Estado do Mato Grosso foi contemplado com recursos da Alemanha (KfW) e do Reino Unido (BEIS) a partir da iniciativa REM (“REDD+ for Early Movers” ou Pioneiros do REDD+).

Mas a efetiva participação de povos e comunidades tradicionais não é trivial. Para que tenham seus direitos e conhecimentos respeitados, eles precisam estar fortalecidos, capacitados e engajados. Tê-los preparados para se posicionarem e ganharem espaço em mesas de discussão é uma tarefa que leva tempo e dedicação. Dedicação não só deles, mas também daqueles que buscam apoiá-los e atender aos requisitos nacionais e internacionais. Afinal, não é fácil que indígenas, quilombolas, ribeirinhos e extrativistas saiam de sua rotina em meio à natureza e tenham que atravessar matas, rios e cidades para escutar sobre um tema tão complexo. Tema esse que é sentido por eles na pele, com a extração ilegal de madeira, chuvas mais ou menos intensas, poluição, contaminação de rios, entre outros tipos de pressão e eventos extremos. Do lado dos especialistas, passar o conteúdo de forma didática e proporcionar uma logística que acomode a participação desses povos e comunidades é igualmente desafiador.

Mas, é possível. O Brasil, após muitos anos de discussão, conseguiu avançar não só em uma interpretação nacional das salvaguardas de Cancun, como também no desenvolvimento de indicadores de salvaguardas de sua agenda de REDD+. Para isso, foram criados grupos de trabalho multissetoriais, dos quais povos e comunidades tradicionais fazem parte.

O estado do Mato Grosso também teve sucesso na construção de uma agenda de clima participativa. Com a redução de 90% do desmatamento entre 2004 e 2014, o Estado foi contemplado com recursos da Alemanha (KfW) e do Reino Unido (BEIS) a partir da iniciativa REM (“REDD+ for Early Movers” ou Pioneiros do REDD+).  Para estar apto a receber recursos, o Mato Grosso criou um sistema de salvaguardas com indicadores robustos, além de ter reforçado espaços de governança para que representantes de povos e comunidades tradicionais fossem escutados – o Subprograma Territórios Indígenas – e avançou em metodologias para que a repartição dos benefícios de REDD+ também chegasse até eles. Para isso, o Estado envolveu e capacitou organizações representantes de povos e comunidades tradicionais.

O estado do Pará também vem avançando na construção do seu sistema estadual – ou jurisdicional – de REDD+. Publicar um instrumento legal e formalizar esse sistema poderia ser rápido e assertivo se envolvesse apenas os negociadores e especialistas da agenda. Mas, como foi dito, capacitar, envolver, discutir e negociar com povos e comunidades tradicionais leva tempo. O Pará vem investindo no preparo de organizações representantes desses povos e comunidades para que eles estejam de fato envolvidos em todo esse processo, desde a construção do marco jurídico e arranjo institucional até instrumentos como ouvidoria, indicadores de salvaguardas e repartição de benefícios. Isso significa investir em diálogo, capacitação técnica, estruturação e manutenção de suas sedes, organização de oficinas regionais e planejamento de uma agenda que considere logística e meios efetivos de comunicação.

E agora, mais uma COP está chegando. Esperamos que, durante as negociações, a floresta em pé seja valorizada, por meio de pagamento por serviços ambientais, investimentos em cadeias de produtos da sociobiodiversidade e efetivos resultados e pagamentos de REDD+. Para isso, é necessário um ambiente colaborativo de igualde e equidade, onde os direitos de todos são efetivamente respeitados e todos tenham voz, poder de escolha e oportunidades. Felizmente, os casos de sucesso vêm mostrando que esse processo não é tão difícil e, mais que isso, é possível e fundamental.

*Roberta Cantinho é Especialista em Políticas Públicas e Relações Governamentais para Clima na TNC Brasil e Karen Oliveira, Diretora de Políticas Públicas e Relações Governamentais na TNC Brasil.

Publicado originalmente em Galileu
27 de outubro de 2022
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