COP30: um marco inédito para Povos Indígenas e o Futuro das Negociações climáticas
A participação sem precedentes de Povos Indígenas na COP30 foi mais um passo em uma jornada de décadas e que agora colhe seus frutos também em agendas internacionais. Essa mobilização histórica colocou os povos originários não apenas como participantes, mas como atores centrais nas discussões globais sobre clima.
A COP30 já pode ser lida como um antes e depois na forma como o mundo enxerga os povos indígenas nas negociações climáticas. Em plena Amazônia e em meio a uma crise de confiança no multilateralismo, o que se viu foi um movimento indígena maduro, articulado e capaz de transformar presença em poder político – nas ruas, nos pavilhões e nos próprios textos negociados do Pacote de Belém.
Cerca de 5 mil indígenas estiveram presentes em Belém, sendo aproximadamente 3,5 mil hospedados na Aldeia COP e cerca de 900 credenciados na Zona Azul (entre brasileiros e estrangeiros), espaço oficial das negociações da ONU. Esse número supera amplamente as edições anteriores, como a COP21 em Paris (2015) e a COP28 em Dubai (2023), que registraram cerca de 250 e 350 indígenas, respectivamente.
Ao lado de quilombolas, ribeirinhos, extrativistas, juventudes e movimentos urbanos, ajudaram a construir a maior marcha pelo clima já registrada no histórico de COPs: com 70 mil pessoas nas ruas, com forte protagonismo indígena e reivindicações por demarcação de terras e justiça climática. Poucos dias depois, a Marcha Indígena A Resposta Somos Nós ocupou novamente as ruas da cidade.
É a primeira vez na história das COPs que o documento do programa de trabalho de mitigação passa a reconhecer “o papel vital dos povos indígenas e comunidades locais” na gestão sustentável das florestas e faz um chamado ao reconhecimento dos seus direitos territoriais como política climática de longo prazo.
Já o texto sobre transição justa menciona explicitamente direitos e proteções para povos indígenas em isolamento voluntário e de contato inicial. A “decisão do mutirão”, texto mais político da COP, também incorpora a linguagem de direitos territoriais e conhecimentos tradicionais, algo que até pouco tempo atrás ficava relegado a parágrafos genéricos.
Para além das salas de negociação, a COP30 foi palco também de importantes anúncios, como o maior avanço em demarcações em quase 20 anos: a homologação de quatro Terras Indígenas e a assinatura de 10 portarias declaratórias, somando, em diferentes etapas de reconhecimento, quase 7 milhões de hectares – uma área maior que o estado da Paraíba.
Na mesma direção, foi lançado o Programa de Proteção de Terras Indígenas (PPTI), pensado como política estruturante para demarcação, gestão e proteção territorial, articulando direitos indígenas e ação climática. É o reconhecimento, em plena COP, de que demarcar é política climática.
No campo do financiamento, a COP30 consolidou um novo patamar de ambição – ainda insuficiente, mas inegavelmente relevante. O Pacote de Belém inclui o compromisso de triplicar o financiamento para adaptação até 2035, com pressão explícita para que países desenvolvidos ampliem recursos destinados ao Sul Global.
Para povos indígenas e comunidades tradicionais, os sinais foram ainda mais nítidos: o compromisso do Grupo de Financiadores sobre Florestas e Posse de Terras (FTFG, na sigla em inglês) foi renovado em US$ 1,8 bilhão por doadores para povos indígenas e comunidades locais, em financiamento direto e indireto.
O mecanismo Fundo Florestas Tropicais para Sempre (TFFF, também da sigla em inglês), lançado oficialmente em Belém, foi desenhado com uma alocação mínima de 20% dos recursos diretamente para povos indígenas e comunidades locais, reconhecendo explicitamente seu papel na conservação das florestas. Ainda que os recursos não cheguem “automaticamente” e nem na escala necessária, a marca de 20% se torna um novo piso político a partir do qual será mais difícil voltar atrás.
Há também um componente de direitos humanos que não pode ser ignorado. Em resposta às denúncias de violência e criminalização de defensores de direitos territoriais, lideranças indígenas saudaram a proposta brasileira de um Plano Nacional de Proteção para Defensores de Direitos Humanos, apresentada no contexto da COP30. Ao ligar proteção de defensores, direitos humanos e metas climáticas, a conferência reforça a mensagem de que não há transição justa possível se quem protege a floresta continua pagando com a própria vida.
Nenhum desses avanços aconteceu de um dia para o outro ou em apenas 15 dias de conferência. Eles são frutos de anos de mobilização, construção de alianças e ocupação de espaços institucionais – processo que culmina, no Brasil, com a criação de um Ministério dos Povos Indígenas e com a presença de lideranças indígenas em cargos de governo diretamente envolvidos na organização da COP30 e na incidência sobre sua agenda, reposicionando o debate das soluções, considerando a presença e a contribuição dos povos indígenas.
O que se viu em Belém foi a convergência entre três frentes: a força das mobilizações nas ruas, a ocupação de espaços de decisão dentro do próprio Estado e do sistema ONU, e a sofisticação das propostas técnicas - como as NDCs indígenas (que são as propostas para mitigação e adaptação às mudanças do clima dos povos indígenas e demandas específicas sobre o TFFF e outros mecanismos de financiamento).
Num momento em que o papel das COPs e o multilateralismo estão em xeque, o movimento indígena amazônico – e sobretudo o brasileiro – oferece um caso de sucesso de como ainda é possível arrancar resultados concretos de um sistema em crise.
Enquanto várias agendas disputam espaço, recursos e visibilidade, os povos indígenas mostram que combinar estratégia, coerência e persistência pode render vitórias estruturais: reconhecimento jurídico de territórios, menções explícitas em textos decisórios, novas janelas de financiamento e compromissos de proteção a defensores.
Se a COP da Amazônia ensinou algo ao mundo, foi isto: não existe futuro climático seguro sem povos indígenas com direitos garantidos, territórios protegidos e condições reais de decidir sobre o destino de suas terras. E, depois de Belém, esse compromisso agora é escrito, negociado e conquistado linha por linha.
Publicado originalmente em Um Só Planeta
12 de dezembro de 2025
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