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Dilema Digital: a Inteligência Artificial na linha de frente da conservação da natureza e do consumo

Por Arley Faria, cientista de Monitoramento, Avaliação e Aprendizagem da TNC Brasil.

Zona da Mata Vista aérea da Mata Atlântica © André Dib

Imagine um guardião incansável, de olhos atentos sobre nossas florestas, capaz de soar o alarme ao menor sinal de desmatamento. Essa é uma das promessas da inteligência artificial (IA) para a conservação. Mas e se esse vigilante high-tech, enquanto protege a natureza de um lado, consome vorazmente seus recursos de outro?

No vasto e muitas vezes impenetrável território de biomas como a Amazônia, a capacidade da inteligência artificial de analisar um volume monumental de dados em tempo recorde é revolucionária. A IA atua em múltiplas escalas, desde uma visão orbital até o detalhe de uma única folha. A primeira grande frente de atuação está nos "olhos do céu": satélites que geram imagens da Terra constantemente, mas são os algoritmos de IA que transformam esse dilúvio de pixels em informações acionáveis e 'consumíveis'.

No Brasil, iniciativas como o Sistema de Detecção de Desmatamento em Tempo Real (DETER) e o Projeto de Monitoramento do Desmatamento na Amazônia Legal por Satélite (PRODES), do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), já são referência mundial no monitoramento, e o uso de IA potencializa essa vigilância, permitindo identificar com mais agilidade desmatamentos menores ou que ocorrem sob nuvens, superando limitações dos métodos tradicionais.

Entre inúmeros exemplos notáveis no Brasil, temos a plataforma PrevisIA, colaboração entre Imazon (Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia), Microsoft e Fundo Vale, que usa IA não apenas para detectar, mas para prever onde o desmatamento é mais provável de ocorrer. Segundo o próprio Imazon, a plataforma alcança uma taxa de acerto de aproximadamente 70%, permitindo que ações preventivas sejam direcionadas, otimizando os sempre limitados recursos de fiscalização.

Em outra frente, o foco se desloca da reação imediata para a prevenção estratégica de longo prazo, um conceito conhecido como "desmatamento evitado". É aqui que se encaixa parte da atuação de um grupo parceiro de cientistas da The Nature Conservancy (TNC) e do Laboratório de Processamento de Imagens e Geoprocessamento (LAPIG) da Universidade Federal de Goiás (UFG). Em vez de apenas prever o próximo alerta, eles realizam modelagens avançadas para simular múltiplos cenários futuros de uso da terra na Amazônia e no Cerrado. A abordagem tecnológica é híbrida, unindo técnicas de IA tradicionais e já consolidadas para modelagem espacial, como Cadeias de Markov e autômatos celulares, com o poder de análise contextual de LLMs (Grandes Modelos de Linguagem) modernos. O resultado não é um alarme para fiscais, mas subsídios técnicos aprofundados para influenciar o desenho de políticas públicas, promover o ordenamento territorial e engajar empresas da cadeia produtiva em compromissos de sustentabilidade. Um exemplo concreto de política pública é o apoio da TNC ao Programa de Pecuária Sustentável do Pará, com foco em uma produção livre de desmatamento.

A tecnologia, no entanto, permite um mergulho ainda mais fundo na floresta, mesmo à distância. Um exemplo inspirador é o da equipe brasileira "AI-rbor", finalista da competição global XPRIZE Rainforest. O grupo desenvolveu uma solução que combina drones e IA para criar inventários da biodiversidade em áreas remotas. Os drones, equipados com sensores hiperespectrais e LiDAR (tecnologia usada para veículos autônomos, por exemplo), coletam dados da copa das árvores e os modelos de IA analisam essas informações para identificar espécies de flora com alta precisão. Simultaneamente, a IA também pode "ouvir" a floresta. Projetos como o da Rainforest Connection, que usa celulares reaproveitados como "ouvidos" na mata, aplicam algoritmos de bioacústica para identificar a presença de espécies de aves, primatas e anfíbios pela sua vocalização ou detectar em tempo real o ruído invasor de motosserras. Essa diversidade de aplicações mostra que a IA está se tornando uma ferramenta cada vez mais acessível, não exigindo grandes volumes de recursos ou expertise técnica. Plataformas como o MapBiomas Alertas usam a tecnologia para validar e refinar alertas de desmatamento em todo o Brasil, enquanto comunidades indígenas já aplicam drones e IA para proteger seus territórios.

Os exemplos não se limitam a estes. Eles são muitos e crescem exponencialmente a cada minuto. 

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A massificação das ferramentas modernas de IA permitiu dar vazão à criatividade na proteção ambiental em todo o mundo e, mais que isso, escalar estas aplicações.

Neste contexto, embora a promessa da IA como ferramenta da conservação seja animadora, para que a equação seja positiva, precisamos encarar sua crescente pegada ambiental. A 'inteligência' dos algoritmos é forjada às custas de um consumo energético colossal: um estudo de 2021, realizado por pesquisadores do Google e da Universidade da Califórnia em Berkeley calcularam que o treinamento do modelo de linguagem que deu origem ao GPT-3 (um precursor das versões mais atuais) consumiu cerca de 1.287 MWh, resultando na emissão de 552 toneladas de CO2, o equivalente às emissões anuais de mais de 100 carros a gasolina. Uma pesquisa anterior, de 2019, da Universidade de Massachusetts em Amherst, que soou o alarme da comunidade de IA, revelou que treinar um único modelo de grande porte pode emitir mais de 284 toneladas de dióxido de carbono, o equivalente a quase cinco vezes as emissões do ciclo de vida de um carro médio, incluindo sua fabricação. E o consumo não para após o treinamento; cada interação com um chatbot tem um custo energético.

Mas a sede da IA não é apenas por eletricidade. Um dos recursos mais invisíveis e impactados é a água. Em uma pesquisa pioneira de 2023, cientistas da Universidade do Colorado em Riverside e da Universidade do Texas em Arlington estimaram que uma conversa de 20 a 50 perguntas com um chatbot pode "beber" o equivalente a uma garrafa de 500 ml de água, usada no resfriamento dos servidores. A escala é enorme: segundo o Relatório Ambiental de 2023 da própria Google, seus data centers consumiram 5,6 bilhões de galões de água em 2022, o que equivale a cerca de 21 bilhões de litros, um aumento de 20% em relação ao ano anterior.

Além da energia e da água, há o custo do "corpo" da IA: o hardware. A produção de GPUs (Graphics Processing Units), que são processadores utilizados em áreas de IA e computação científica, essenciais para rodar os algoritmos, depende da mineração de terras raras e outros minerais, processos com altos custos ambientais e sociais.

Drone voando com céu azul ao fundo.
TECNOLOGIA Drone equipado com sensores avançados que, junto com inteligência artificial, ajudam a mapear e proteger a biodiversidade. © Fabio Medeiros

Diante do dilema, a solução não é demonizar a tecnologia, mas sim encará-la com o mesmo rigor que aplicamos a outras atividades de grande impacto. A boa notícia é que a comunidade tecnológica e ambiental já começou a se mobilizar, criando organizações, ferramentas e princípios para pavimentar o caminho de uma "IA Verde".

Um dos exemplos mais proeminentes é a organização Climate Change AI (CCAI), uma coalizão global de pesquisadores e engenheiros que se dedicam a catalisar trabalhos que usem a IA para combater a crise climática. A CCAI não apenas fomenta pesquisas, mas organiza workshops em grandes conferências de IA (como a NeurIPS), criando uma ponte essencial entre os especialistas em clima e os desenvolvedores de algoritmos. Seu objetivo é garantir que a IA seja uma ferramenta poderosa e positiva nesta luta.

A conscientização gerou a necessidade de ferramentas práticas. Como um desenvolvedor pode saber o custo ambiental de seu código? Para responder a isso, surgiram projetos como o CodeCarbon. Trata-se de uma biblioteca de código aberto em Python que estima as emissões de CO2 geradas pelo uso do hardware. Ao integrá-la em seus projetos, um cientista de dados pode saber, por exemplo, que o treinamento de seu modelo para identificar espécies emitiu X quilos de CO2. É a materialização da pegada de carbono, permitindo uma análise de custo-benefício real.

Do lado corporativo, gigantes como Google, Microsoft e Amazon Web Services estão em uma corrida para alimentar seus data centers com fontes de energia 100% renováveis e investir em hardware mais eficiente, como os chips TPUs do Google, projetados especificamente para IA. Embora a transparência total ainda seja um desafio, a pressão de investidores e da sociedade civil tem gerado relatórios ambientais cada vez mais detalhados.

Essas iniciativas alimentam um princípio maior: a busca pela "IA Frugal". Em vez de seguir a tendência de que "maior é sempre melhor", essa abordagem defende a criação de modelos menores, mais eficientes e que necessitem de menos dados, sem sacrificar a eficácia para a tarefa em questão. Isso significa o entendimento de que não precisamos do modelo mais potente do mundo, mas sim do modelo certo e mais eficiente para cada problema.

Por décadas, aprendemos a exigir estudos de impacto ambiental para uma hidrelétrica, uma rodovia ou um complexo industrial, por exemplo. É hora de aplicarmos essa mesma lógica à infraestrutura digital. A inteligência artificial não é uma força etérea na "nuvem"; ela tem uma base física, com custos reais em energia, água, minerais e pessoas!

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O desafio é transformar o poder computacional em sabedoria ecológica. E isso depende menos de algoritmos complexos, e mais de escolhas humanas inteligentes, baseadas em ciência.

Mas o verdadeiro avanço não estará em criar algoritmos mais complexos, e sim em desenvolver um ecossistema tecnológico que opere em harmonia com os limites do mundo natural que ele visa proteger. O desafio é transformar o poder computacional em sabedoria ecológica. E isso depende menos de algoritmos complexos, e mais de escolhas humanas inteligentes, baseadas em ciência.

Publicado originalmente em Galileu
17 de junho de 2025
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