Monitoramento do Cerrado
CORUJA DO CERRADO Coruja-buraqueira no galho de uma árvore no bioma cerrado. © Adilson Sochodolak/TNC Photo Contest 2021

Artigos e Estudos

Por que o monitoramento do Cerrado feito pelo Inpe não deveria acabar

Saiba os riscos da falta de fiscalização do desmatamento na região.

Por Edenise Garcia, Fernando Cesário, Flávia Resende, Mário Barroso, Milena Rosenfield e Thaciane Silva - Ciências TNC

O Brasil sempre se destacou pelo pioneirismo e qualidade nos mapeamentos sistemáticos da cobertura de vegetação nativa e dos processos de desmatamento. Graças à liderança do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), possuímos um conjunto de ferramentas de monitoramento e séries históricas que são fundamentais para entender as transformações no território brasileiro e servir de subsídios à formulação de políticas públicas.

Esse trabalho se iniciou na década de 1990 com o monitoramento anual do desmatamento na Amazônia Legal realizado pelo Projeto de Monitoramento do Desmatamento na Amazônia Legal por Satélite (Prodes) Amazônia, e foi ampliado com a criação de outros sistemas também voltados para o bioma, como alertas de desmatamento (DETER), degradação florestal (DEGRAD) e corte seletivo de madeira (DETEX).

Em 2016, o monitoramento do Inpe passou a focar também no Cerrado, por meio do Prodes e do Deter Cerrado, cobrindo inclusive a vegetação mais aberta. No entanto, com o término do financiamento internacional destinado ao Cerrado e sem o respaldo do Governo Federal, ao qual o Inpe está ligado, o monitoramento desse bioma pelo instituto deverá ser encerrado em abril de 2022.

Com uma área total de cerca de 2 milhões de km², o equivalente a 24% do território nacional, o Cerrado está presente em 11 estados brasileiros, do norte do Paraná ao sudeste do Pará, além do Distrito Federal (Figura 1). Em função da sua ampla extensão e variações de relevo e clima, nesse bioma são encontrados diversos tipos de vegetação: campo limpo, campo sujo (também chamado de campo Cerrado), Cerrado sensu stricto, cerradão e florestas, além de formações vegetais específicas, como campos de murundus, campos rupestres, veredas e palmeirais.

Figura 1. Localização do Cerrado, incluindo estados e bacias hidrográficas sobrepostas (Foto: IBGE e ANA. Elaborado pela TNC Brasil)

O resultado dessa variedade de formações vegetais é uma biodiversidade de animais e plantas extremamente rica, com altas taxas de endemismo (espécies que só ocorrem nesse bioma), sendo as savanas do Cerrado aquelas com maior riqueza de plantas do mundo. Apesar dessa importância, apenas 8,2% do Cerrado encontra-se formalmente protegido em unidades de conservação.

Ameaças

O bioma sofre com altas taxas de conversão da vegetação nativa para uso agropecuário. Metade da vegetação original do Cerrado já foi perdida, segundo dados do Prodes Cerrado. As restrições de expansão de cultivos na Amazônia, decorrentes da Lei de Proteção da Vegetação Nativa (Lei 12651/2012, conhecida como Código Florestal), zoneamentos ecológicos-econômicos e compromissos voluntários como a Moratória da Soja protegem ao menos em parte a Amazônia. Por outro lado, facilitaram a expansão das commodities agrícolas no Cerrado, um bioma historicamente menos sujeito a pressões internacionais para sua conservação, apesar de ser um hotspot de biodiversidade e berçário de rios importantes.

Nesse contexto, a ausência de um mecanismo de suporte ao controle ambiental facilita o desmatamento do bioma. De 1985 até 2020 essa conversão ocorreu preferencialmente em áreas de savana (56%), de acordo com o MapBiomas, mas essa perda não é homogênea. A Figura 2 apresenta as áreas de concentração do desmatamento no Cerrado, mostrando que nas últimas décadas essas transformações foram mais intensas no centro do Mato Grosso, no oeste da Bahia, na porção sul do Maranhão e do Piauí e no centro do Tocantins.

Esses quatro últimos estados fazem parte da região conhecida como Matopiba (uma combinação de suas iniciais), considerada a principal frente atual de expansão de soja, milho e algodão no Brasil, onde foram detectados 64% do desmatamento total do Cerrado em 2021, de acordo com o Prodes.

Figura 2. Mapa do Cerrado indicando as áreas de concentração do desmatamento entre 1985-2020 por células de 20 km X 20 Km (Foto: MapBiomas, Coleção 6. Elaborado por TNC Brasil.)

Embora os holofotes da mídia e a atenção da população em geral estejam voltados sobretudo para a destruição da Amazônia, a taxa anual de desmatamento do Cerrado em relação à área total de remanescente florestal desse bioma foi, em média, de 0,95% ao ano, nos últimos dez anos. Esse índice é entre 2 e 12 vezes maior que o observado na Amazônia no mesmo período (Figura 3).

Figura 3. Variação anual da perda percentual de vegetação nativa do Cerrado e da Amazônia ao longo dos últimos dez anos. (Foto: Prodes Cerrado e Prodes Amazônia/Elaborado por TNC Brasil)

Juntam-se ao desmatamento as queimadas reiteradas e de largas proporções que nos últimos 20 anos atingiram quase um terço da vegetação nativa do Cerrado. O fogo intenso e de grande amplitude resultante de ações antrópicas interfere com o ciclo natural de queima do bioma, de frequência e intensidade moderadas, afetando a capacidade de rebrota, essencial para a manutenção dos mosaicos de vegetação.

As consequências

Os efeitos dessa perda acelerada do Cerrado vão além dos impactos na biodiversidade. Os solos do Cerrado são em sua maioria profundos e por vezes estocam grandes quantidades de carbono, apresentando um importante potencial de mitigar os impactos das mudanças climáticas atuais e futuras. Além disso, o Cerrado é um bioma onde as espécies de arbustos e árvores investem muito em suas raízes. Em virtude das características climáticas e de solo na região do bioma, onde as chuvas são mal distribuídas ao longo do ano e existe um longo período de seca, a vegetação existente apresenta adaptações para resistir a essa condição, como raízes profundas.

Estudos mostram que algumas fitofisionomias do Cerrado podem estocar até três vezes mais carbono nas raízes do que estocam acima do solo. Por exemplo, áreas gramíneo-lenhosas podem estocar 4 toneladas por hectare de carbono acima do solo, porém 14 toneladas abaixo. Já áreas com aspectos mais savânicos podem guardar entre 11 e 24 toneladas de carbono acima do solo e entre 24 e 33 abaixo. O Cerrado é, assim, o segundo bioma brasileiro em estoque de carbono, perdendo apenas para a Amazônia. Um estoque enorme que precisa ser monitorado.

O Cerrado também abriga as nascentes de grandes rios como Araguaia/Tocantins, Paraguai e São Francisco, e é cortado por seis das oito grandes bacias hidrográficas do país (Figura 3): Amazônica, Araguaia/Tocantins, Atlântico Norte/Nordeste, São Francisco, Atlântico Leste e Paraná/Paraguai. Além disso, nele estão localizados três dos principais aquíferos brasileiros: Bambuí, Urucuia e Guarani. O bioma possui, portanto, um papel essencial na recarga de aquíferos e na vazão de importantes rios brasileiros como Paraná, Araguaia/Tocantins e São Francisco contribuindo com cerca de 50%, 62% e 94% da vazão desses rios, respectivamente.

Portanto, não só o desmatamento, mas também as alterações no uso de recursos hídricos associadas à multiplicação de sistemas de irrigação para manutenção do agronegócio podem afetar a segurança hídrica de várias regiões brasileiras, assim como a energética. Isso porque a produção hidrelétrica nacional é fortemente dependente das águas do Cerrado.

Além dos aspectos ambientais, o Cerrado apresenta grande importância social. São 126 terras indígenas ocupando 4,3% do território, 44 territórios quilombolas, além de inúmeras comunidades tradicionais, incluindo geraizeiros (Geral é o nome recebido pelo Cerrado no norte de Minas Gerais e Oeste da Bahia), quebradeiras de coco babaçu (no Maranhão, Piauí e Tocantins), vazanteiros (nas margens do rio São Francisco), apanhadores de flores sempre-vivas (na serra do Espinhaço, em Minas Gerais), dentre outras não menos importantes, mas pouco conhecidas, que detêm um enorme conhecimento tradicional da biodiversidade e que dependem da manutenção do bioma para sua sobrevivência.

Deve-se ponderar também que os benefícios advindos da ocupação agrícola do Cerrado para a economia brasileiras são evidentes e incontestáveis, mas, para que isso ocorra sob bases sustentáveis, proporcionando o máximo de benefícios com o mínimo de impactos, é fundamental a geração de dados e informações técnicas sobre esse bioma para subsidiar o planejamento territorial e a tomada de decisão, evitando maiores danos socioambientais.

O monitoramento garante a procedência de produtos das cadeias de soja, milho e algodão, uma vez que o desmatamento e as atividades ilegais atreladas a essas cadeias podem ser identificados com o uso de ferramentas como Prodes e Deter Cerrado. A continuidade do monitoramento do desmatamento é, portanto, importante para exportadores e importadores, a exemplo da União Europeia, que hoje já adota critérios socioambientais bem mais exigentes para importar produtos.

Felizmente, o monitoramento do Cerrado não será de todo perdido. Caso o governo realmente encerre o Prodes e o Deter Cerrado, o MapBiomas, iniciativa não governamental que se iniciou em 2015 para mapeamento da dinâmica do uso da terra usando ferramentas de computação em rede e inteligência artificial, anunciou que lançará imediatamente um sistema de alertas de desmatamento do bioma.

No entanto, por diferenças metodológicas, o MapBiomas não é capaz de substituir o Prodes Cerrado. Além da disrupção da série histórica, a desmobilização dos especialistas envolvidos nesse mapeamento representará uma enorme perda em termos do papel estratégico do Inpe na geração de informação de qualidade para o território brasileiro.

*Edenise Garcia é diretora de Ciências, Fernando Cesário é especialista em carbono, Flávia Resende é especialista em propostas e comunicação científica, Mário Barroso é coordenador de monitoramento, Milena Rosenfield é líder em ecologia e Thaciane Silva é especialista em geoprocessamento, todos na The Nature Conservancy (TNC) Brasil. 

Publicado originalmente na Revista Galilleu.
26 de janeiro de 2022.
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