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É preciso acabar com a pena de morte das águas e rios no Brasil

Você sabe o que significa um rio de classe 4 e o impacto disso para o país?

Por Samuel Barreto, Líder de Água da TNC Brasil, e Malu Ribeiro, Diretora de Políticas Públicas da SOS Mata Atlântica

Vista aérea de mineração no Rio Tapajós.

A qualidade da água dos rios brasileiros exige atenção, em especial neste momento de emergência climática. Embora o Brasil seja um país privilegiado por reunir grandes bacias hidrográficas e a maior reserva de água doce superficial e subterrânea do mundo, a distribuição da água superficial é bastante desigual no território. Enquanto a Amazônia tem cerca de 68% da água; o Centro Oeste possui, 16%; e as regiões Sul, Sudeste e Nordeste juntas, apenas 16%, porém com mais de 80% da população brasileira e com boa parte de sua malha hidrográfica comprometida.

A pressão das atividades econômicas e humanas por usos da água vem sendo agravada ao longo dos anos pela precária condição de saneamento básico nas áreas urbanas de diversas regiões do país. Nas áreas rurais, o desmatamento e usos inadequados do solo intensificam os impactos de eventos climáticos extremos. Tais dinâmicas exigem maior eficiência e efetividade na aplicação de políticas públicas que levem em conta também as soluções baseadas na natureza, seja no ambiente urbano ou rural.

A crise hídrica e a indisponibilidade da água em 15% do território nacional abrangido pelo bioma Mata Atlântica, especialmente na região sudeste, são agravadas pela precária qualidade ambiental e das águas dos rios e mananciais.  Ao reconhecermos os rios como espelhos das cidades, das regiões hidrográficas e dos países, conseguimos identificar rapidamente a condição de saúde das águas, dos usos do solo e do saneamento ambiental em diferentes níveis de bacia, bem como o modelo de desenvolvimento adotado.

Rios e águas contaminadas não são reflexos apenas da ausência de recursos, mas, na maior parte dos casos, resultam da implementação parcial de políticas públicas, falta de priorização e de instrumentos eficazes de planejamento, gestão e governança.

Refletem a falta de saneamento ambiental, a ineficiência ou falência do modelo adotado no setor atualmente, o desrespeito aos direitos humanos de acesso à água em qualidade e quantidade adequadas e o subdesenvolvimento, o que traz consequências e prejuízos ambientais, sociais e econômicos. Para reverter esse quadro, a Política Nacional de Recursos Hídricos, voltada a garantir o uso múltiplo da água, tem instrumentos de gestão estratégicos, como a outorga de uso da água e o enquadramento dos corpos d’água em classes de água, definidas de acordo com os usos preponderantes da água nas bacias hidrográficas e com sua qualidade.

Esses instrumentos de gestão e governança fazem a integração das agendas ambiental, do saneamento, da água e do clima, entre outras. A sua interface e aplicação pelos comitês de bacias hidrográficas, conselhos estaduais e Conselho Nacional de Recursos Hídricos, com engajamento da sociedade, usuários da água e órgãos gestores, visa dotar os planos de bacias de metas progressivas de qualidade da água e, dessa forma, garantir os usos múltiplos de forma sustentável.

Mas, para que essas metas se traduzam de fato em ações de melhoria da qualidade da água de rios e mananciais, é urgente aprimorar as normas que tratam do enquadramento dos corpos d’água, definidas hoje na Resolução 357 do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), excluindo dentre elas a Classe 4 dos rios brasileiros.

Segundo esta Resolução, as águas doces são classificadas em 5 classes de água: Classe especial, Classe 1, Classe 2, Classe 3 e Classe 4. É uma graduação que vai da melhor qualidade de água (Classe Especial) para a pior qualidade (Classe 4). Embora a classificação de rios de Classe 4 defina que essas águas são destinadas à navegação e à harmonia paisagística, em muitos casos esse aspecto paisagístico não é viável ou aceitável devido ao alto grau de poluição. Para dar um exemplo, o rio Tietê, no trecho que corta a cidade de São Paulo, é um rio de Classe 4.

Enquadrar um corpo d’água na Classe 4, em uma classificação extremamente permissiva em relação a contaminantes, significa condenar os rios à morte. Um rio de classe 4 recebe cargas poluidoras provenientes de tratamento precário de esgotos domésticos e industriais, poluição difusa (a partir de diversas origens) e suas águas acabam se transformando em vetores de doenças de veiculação hídrica. Ou, às vezes, nem coleta e tratamento de esgoto existe, contaminando diretamente as águas. Importante destacar que o custo e os tipos de tecnologias utilizadas para despoluição dos rios e para a melhoria da qualidade da água são altos e de longo prazo e dependem do combate da poluição na origem. Ou seja, do não lançamento de poluentes nos corpos d’água.

A situação precária de rios enquadrados na Classe 4 se agrava ainda mais com as drásticas variações climáticas e de vazão. Esses rios não mantêm condições de diluir o enorme volume de poluentes e nutrientes que recebem e se tornam cada vez mais contaminados. A consequência é a indisponibilidade de suas águas para usos múltiplos, além da degradação dos sistemas aquáticos.

A Classe 4, de acordo com a norma vigente, condena sumariamente essas águas à condição péssima, com impacto direto na saúde pública. Estudos da Organização Mundial da Saúde (OMS) apontam que, para cada dólar deixado de ser investido na área do saneamento, gasta-se pelo menos de 4 a 5 dólares no sistema de saúde, com o adoecimento das pessoas em função do contato com a água contaminada. Isso mostra que, quando não há investimento em saneamento, gastamos pelo menos quatro vezes mais – e da pior forma possível - em função das doenças de veiculação hídrica.

Considerando a retomada dos trabalhos no CONAMA, assim como a sua reorganização, essa seria uma agenda positiva e importante. Porque é possível atualizar a norma brasileira que trata das classes de água, de forma a não permitir o enquadramento de rios na Classe 4. Essa alteração não vai simplesmente mudar a condição dos rios da noite para o dia, mas vai induzir avanços. É possível estabelecer um plano de transição para tirar os rios dessa precária condição no Brasil. Teríamos uma enorme oportunidade considerando a aplicação dos investimentos voltados à recuperação das águas, seja na coleta e tratamento do esgoto proporcionando, consequentemente, os outros múltiplos benefícios, como a geração de emprego, a melhoria da saúde das pessoas e do bem-estar social; seja pelo fortalecimento de um pilar estratégico para o desenvolvimento econômico do país, que é a segurança hídrica.

A melhoria da qualidade da água e a segurança hídrica dependem da atualização e aplicação das políticas públicas de meio ambiente, recursos hídricos, saneamento e da adoção dos seus instrumentos de gestão, definidos com transparência e engajamento da sociedade. Esse seria um importante ganho socioambiental permitindo a “ressureição” das nossas águas e rios hoje enquadrados como rios de Classe 4.

Publicado originalmente em Um Só Planeta
  29 de maio de 2023
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