Restauração ecológica na Zona da Mata une agroecologia, parceria social e economia rural para transformar o território
Na Zona da Mata mineira a paisagem ainda é marcada por fragmentos isolados de Mata Atlântica cercados por pastagens degradadas. Esse cenário ameaça espécies como o muriqui-do-norte, maior primata das Américas, e agrava a degradação do solo, da água e da biodiversidade. Diante desse desafio, a restauração ecológica vem ganhando protagonismo na região, reunindo ciência, inovação e participação social para regenerar ecossistemas, ao mesmo tempo em que fortalece a economia rural.
É nesse contexto que a The Nature Conservancy (TNC) Brasil atua de forma articulada com a Universidade Federal de Viçosa (UFV), o Instituto Socioambiental de Viçosa (ISAVIÇOSA), proprietários rurais e parceiros privados, promovendo ações que vão desde a mobilização comunitária até a capacitação em técnicas inovadoras e o fortalecimento de viveiros e redes de coletores de sementes, criando as condições necessárias para a recuperação de áreas estratégicas, como nascentes e matas ciliares, e contribuindo para a manutenção da biodiversidade.
Restauração ecológica ganha escala com arranjos socioinovadores
Em 2018, o Estado de Minas Gerais reconheceu o percurso agroecológico que vem sendo trilhado na região da Zona da Mata e criou o Polo Agroecológico e de Produção Orgânica, que hoje orienta e fortalece novas ações e arranjos de mobilização. Assim, a restauração ecológica na Zona da Mata vem avançando a partir de arranjos socioinovadores, que unem ensino, pesquisa e prática no território como em um sistema agroflorestal, em que diferentes espécies se complementam e cada ator social contribui de forma singular para o fortalecimento do conjunto. Por meio de parcerias entre organizações da sociedade civil, como o ISAVIÇOSA, instituições de ensino como a UFV e o apoio da TNC Brasil, a região vem estruturando um modelo que valoriza o protagonismo local e integra diferentes saberes para consolidar uma rede de restauração duradoura da paisagem.
Quando a restauração florestal com a técnica de semeadura direta - a chamada muvuca de sementes (técnica de restauração florestal de mistura de sementes) - começou a ser aplicada na região, a maioria das sementes vinha de outras áreas, sobretudo do Cerrado, com pouca presença de espécies da Mata Atlântica, evidenciando a falta de oferta local e de redes estruturadas de coleta. A criação dessas redes é estratégica: além de assegurar a restauração com a biodiversidade nativa, mantém no território a maior parte dos recursos investidos, fortalecendo as famílias agricultoras. Essas constatações motivaram a realização de uma oficina organizada pelo ISAVIÇOSA, com parceiros estratégicos, para a elaboração de um diagnóstico regional. Dessa articulação nasceu o Acordo de Cooperação entre a TNC Brasil e a UFV, denominado ‘Arranjos para a Restauração Socioinovadora de Paisagens’, o RESTAURA-ZM, oficialmente iniciado no início deste ano, que tem como principal objetivo fortalecer a restauração ecológica das paisagens da região por meio da estruturação de uma rede regional de coleta de sementes que integre restauração florestal, geração de renda e fortalecimento da agroecologia. Para isso, desenvolve ações de ensino, pesquisa e extensão voltadas à articulação de redes de coleta, à construção participativa do conhecimento e ao incentivo à transição agroecológica como forma de restauração socioinovadora, com base em processos de sensibilização e capacitação para a formação de coletores de sementes.
“A semente é o ponto de partida para todo o processo”, destaca a professora Lausanne S. de Almeida, do Departamento de Engenharia Florestal da UFV, responsável pelo Laboratório de Análise de Sementes Florestais (LASF/UFV), unidade fundamental nesse arranjo. Segundo ela, “trabalhar com sementes para muvuca não é como simplesmente pedir uma quantidade de uma espécie em uma feira; envolve diversidade e qualidade. É preciso mapear e marcar árvores matrizes escolhidas para a coleta, garantindo rastreabilidade e diversidade genética”.
A iniciativa busca ainda estabelecer uma ponte entre produtores de sementes e compradores, articulando agricultores cadastrados que disponibilizam áreas para coleta. As sementes coletadas são encaminhadas diretamente ao Laboratório Sementes, onde serão armazenadas, analisadas e preparadas para comercialização, garantindo qualidade e rastreabilidade.
Além do RESTAURA-ZM, outras ações de restauração já vinham sendo realizadas na região, como o projeto de recuperação de áreas vizinhas ao Centro de Pesquisa Iracambi, na Serra do Brigadeiro, implementado pelo ISAVIÇOSA com apoio da TNC Brasil no âmbito do projeto de restauração da Hyundai. A iniciativa, denominada Semeando Diversidade Plantando Água, contemplou 26 hectares, sendo 17 no Palmital, na Área de Proteção Ambiental (APA) de São Bartolomeu, e 9 no Parque Natural Municipal do Cristo Redentor, conhecido como Parque do Cristo. Ambas Unidades de Conservação estão localizadas em Viçosa (MG) e receberam intervenções para restauração de áreas degradadas. O ribeirão São Bartolomeu, beneficiado pela ação, é importante manancial e abastece 100% da UFV, além de contribuir com cerca de 30% do abastecimento público municipal.
O projeto de implementação do Parque do Cristo é uma iniciativa do ISAVIÇOSA em parceria com a Prefeitura de Viçosa, com apoio do Ministério Público de Minas Gerais e da TNC Brasil. No local, o Instituto desenvolve ações voltadas à restauração dos ecossistemas, como práticas de manejo e conservação do solo e da água que inclui terraços em curva de nível, barraginhas, caixas de contenção e paliçadas, capazes de reter milhões de litros de chuva e favorecer a recarga do solo. Também foram aplicadas técnicas de semeadura direta por muvuca de sementes. As comunidades do entorno participaram em mutirões de plantio articulados a ações educativas e de mobilização social, enquanto o espaço passou a receber visitas de estudantes, que permitem vivenciar na prática essas inovações. O resultado já pode ser observado nas mudanças visíveis da paisagem.
A experiência também gera resultados acadêmicos e visibilidade para eventos como a Troca de Saberes, organizada pela UFV por meio do Núcleo de Educação do Campo e Agroecologia (ECOA). O encontro reúne participantes da Zona da Mata e de outras regiões do Brasil, oferecendo espaço para a disseminação de inovações socioecológicas e para a realização de instalações que permitem ao público perceber, de forma concreta, as mudanças na paisagem, além de firmar esse movimento como campo de estudo e prática dentro da Universidade.
Entre as espécies nativas utilizadas no plantio do Parque do Cristo destaca-se a juçara, que vem ocupando um papel cada vez mais relevante no processo. Espécie-chave na Mata Atlântica, ela alimenta mais de 60 espécies de animais, auxilia na dispersão de sementes e contribui para a manutenção da biodiversidade. Seu manejo sustentável, com foco na colheita do fruto, oferece alternativas econômicas e incentiva a conservação. Nos últimos três anos, foram plantadas entre três e quatro mil mudas em diferentes áreas da região. Além de representar uma estratégia eficiente de restauração da biodiversidade, a juçara traz potencial produtivo para integrar economias circulares e solidárias e geração de renda para as comunidades rurais.
Café sustentável e conservação ambiental se unem no entorno do Parque Estadual da Serra do Brigadeiro
Um movimento complementar ao agroecológico vem ganhando força na Zona da Mata mineira, uma abordagem que une produção de alimentos e conservação ambiental: a economia rural com foco na sustentabilidade no campo. Para ampliar o alcance, entram em cena múltiplos parceiros e frentes de atuação. Em parceria com o Instituto Estadual de Florestas (IEF), a Universidade Federal de Viçosa (UFV) – por meio do Departamento de Economia Rural e do Agro Plus, programa de estágio e capacitações –, o Parque Estadual da Serra do Brigadeiro (PESB), a The Nature Conservancy (TNC) Brasil e empresas privadas, a iniciativa aposta na integração entre conservação e desenvolvimento rural. O objetivo é mostrar que é possível gerar renda, melhorar a qualidade da produção e conservar o patrimônio natural no entorno de uma das áreas mais importantes de conservação da região, a Serra do Brigadeiro.
A presença do parque influencia diretamente a vida dos agricultores locais, gerando tanto desafios quanto oportunidades. Entre as restrições, está a limitação do uso de áreas de preservação para cultivo, realidade ainda pouco compreendida por parte dos produtores, que nem sempre percebem que a proteção desses espaços garante benefícios como maior disponibilidade de água e manutenção da biodiversidade. A iniciativa busca justamente aproximar esses dois universos, promovendo o entendimento sobre a importância da conservação e o potencial produtivo da região. O movimento abrange também outras linhas de atuação, contribuindo para o fortalecimento de uma nova cultura no campo. Além da assistência direta às propriedades, desenvolve ações educativas nas escolas, aproximando os filhos de produtores das questões ambientais e de gestão, estimulando, desde cedo, a compreensão da importância da regularização e das boas práticas produtivas, fortalecendo a cultura de sustentabilidade no meio rural.
Além dos ganhos com o aumento da produtividade, o projeto também abre espaço para que os produtores participem de programas de Pagamento por Serviços Ambientais (PSA) voltados à conservação ambiental. Nesse modelo, o produtor recebe compensação financeira pela adoção de práticas que preservam e recuperam recursos naturais, como o manejo adequado do solo, a proteção de nascentes e o aumento da cobertura vegetal. A proposta é que a adequação ambiental das propriedades, além de atender à legislação, gere benefícios diretos para o campo e para a sociedade, com a redução da erosão e do assoreamento de cursos d’água, o aumento da infiltração e da retenção hídrica no solo, a melhora da qualidade da água, o fortalecimento da biodiversidade e a contribuição para a mitigação dos efeitos das mudanças climáticas.
“Ao aproximar estudantes universitários das propriedades rurais, fortalecemos os laços e facilitamos a aceitação das práticas propostas. Essa presença constante na propriedade ajuda o produtor a entender que a adequação ambiental é benéfica para ele, gerando ganhos econômicos, melhorando a qualidade de vida e protegendo o patrimônio natural”, comenta o professor do Departamento de Economia Rural da UFV e coordenador do projeto, Aziz Galvão da Silva Júnior.
A Zona da Mata tem mostrado como a vocação do território, marcada pela agroecologia e pela agricultura familiar, pode orientar o planejamento da restauração da paisagem, fortalecendo o elo entre a regeneração da natureza e a valorização das comunidades. O resultado é a construção coletiva de um território mais resiliente, justo e sustentável. É, mais uma vez, como em um SAF, em que diferentes elementos que se somam para sustentar o mesmo ecossistema. “Com planejamento, envolvimento comunitário, apoio técnico e parcerias sólidas, a restauração ambiental aqui vem ganhando força e mostra que recuperar o território é também cuidar das pessoas, da água e do futuro. Esse movimento vai além do plantio, envolve a sociobiodiversidade expressa nas práticas de manejos, na soberania e na segurança alimentar, na autonomia das comunidades tradicionais e na afirmação de suas culturas e cosmologias na busca pelo Bem Viver”, finaliza Bráulio Furtado, gestor de projetos do ISAVIÇOSA e pesquisador colaborador do RESTAURA-ZM.