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Enraizado em tradição

Para comunidades Indígenas e tradicionais da Amazônia, trabalhar com a natureza é um meio de subsistência e um modo de vida.

Homens em um barco transportando cachos de açaí
Socio-Bioeconomy O açaí é um dos principais produtos da sociobioeconomia no Brasil, onde comunidades locais utilizam técnicas tradicionais de colheita. © Priscila Tapajowara_If Not Us Then Who?

“Para nós, o açaí é vida, é sangue”, diz Tairene Karipuna.

 

Karipuna é um dos quatro grupos étnicos membros da UASEI, uma cooperativa Indígena no Oiapoque. Há incontáveis gerações, comunidades Indígenas aqui e em outras partes do Brasil comem os frutos do açaí.

Hoje, o açaí está no centro de uma série de negócios que a UASEI desenvolveu para apoiar o meio de subsistência de famílias Indígenas e ajudar a preservar sua herança cultural. Isso inclui o uso de técnicas tradicionais de colheita do açaí que evitam danos às florestas onde os frutos crescem.

“Não desmatamos para plantar o açaizeiro”, diz Karipuna. “Assim como ele nos fortalece e nutre, nós cuidamos dele para que ele nos ajude”.

Essa relação recíproca com a natureza é compartilhada por muitas comunidades Indígenas e tradicionais por toda a região Amazônica da América do Sul. Ela reflete uma relação espiritual e prática com a natureza. Ao preservar a floresta, essas comunidades asseguram que o açaí e outras plantas cruciais para sua subsistência estarão disponíveis em um futuro duradouro.

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No entanto, o futuro da floresta está ameaçado. Conforme o uso insustentável da terra, tal como a agricultura mal manejada, esgota as árvores da Amazônia, o bioma pode em breve deixar de ser um dos maiores sumidouros de carbono e tornar-se uma fonte de emissão de carbono—o que poderia ter consequências desastrosas para o clima global.

O crescente número de negócios pertencentes às comunidades Indígenas e tradicionais, baseados em práticas tradicionais e firmados na autogovernança de seus territórios, pode mudar essa trajetória. Eles oferecem um modelo econômico alternativo que é mais empoderador para as comunidades Indígenas e tradicionais e mais sustentável para a natureza.

Em toda a região, a TNC trabalha com parceiros e comunidades para criar as condições para uma próspera economia baseada na floresta e que beneficia as pessoas e a natureza.  Esses esforços coletivos têm o poder de mudar o futuro da Amazônia. 

Pessoa em uma palmeira sobre áreas alagadas.
PALMEIRAS DE CANANGUCHA A sociobioeconomia é um modelo holístico de desenvolvimento econômico liderado por povos indígenas e comunidades locais, que promove a inclusão social enquanto conserva a natureza. © Sebastian Di Domenico

A Amazônia—passado, presente e futuro

A Floresta Amazônica se espalha por nove países da América do Sul, cobrindo quase 40 por cento do continente. Ela representa um terço das florestas tropicais do mundo e abriga 10 por cento da biodiversidade do planeta. Ela também armazena mais de 120 bilhões de toneladas de carbono em suas plantas e solo—o equivalente a 15-20 anos de emissões de carbono no mundo.

Mas a Amazônia não é só uma região selvagem e intocável. Ela abriga 30 milhões de pessoas, incluindo mais de 2 milhões de Povos Indígenas. E para essas comunidades, a floresta tem sido sua fonte de subsistência há muito tempo. Plantas como o açaí, cacau e outras frutas e nozes são alimentos tradicionais e, cada vez mais, a fonte dos produtos que eles comerciam.

Essas são plantas nativas da floresta, fornecendo alimentos e abrigo para a vida selvagem. Frequentemente, suas nozes e frutos podem ser colhidos usando processos tradicionais alinhados aos ciclos de crescimento natural, o que torna seus produtos mais sustentáveis. Mas eles também são mais do que somente alimentos ou produtos—para muitas comunidades, eles são parte de sua herança cultural e espiritual.

“Cada planta tem seu próprio espírito e o canangucha é um espírito potente e antigo”, diz Irma Garcia, uma anciã da Reserva El Quince  no município de Solano, na região do Alto Caquetá na Colômbia.

 

Hands holding an açaí fruit.
O canangucha é o fruto da palmeira Mauritia flexuosa. Enraizada na floresta e reverenciada pela tradição, a planta do canangucha nutre os ecossistemas e representa a alma cultural das comunidades locais na Amazônia colombiana. © Meseta Films

O povo da Reserva El Quince usa a fruta vermelha da canangucha há gerações para tratar febres e outras enfermidades e para preparar bebidas cerimoniais que são consumidas quando a comunidade se junta para ouvir as palavras dos anciãos e se comunicar com os espíritos da floresta.

Mas hoje, a Amazônia e as comunidades que ela apoia enfrentam pressões urgentes.

Cerca de 20 por cento do bioma foi desmatado desde 1970 e outras áreas foram degradadas. O desmatamento, a mineração ilegal, a agricultura insustentável—especialmente a pecuária—a poluição e as mudanças climáticas estão remodelando a paisagem e as águas, colocando seus rios, florestas e comunidades Indígenas em risco. 

Silhouette of a person standing on a boat as they cast a fishing net, backlit by a setting sun.
Fisherman casting his net on the Amazon River in Brazil. Fisherman casting his net on the Amazon River in Brazil. © Haroldo Palo, Jr

O Ritmo dos Rios

As mudanças climáticas estão alterando os ciclos hídricos da Bacia Amazônica—um desafio para as comunidades Indígenas e tradicionais que dependem de seus rios para alimentação, circulação e conexões. Saiba mais sobre como essas comunidades estão se adaptando a uma nova realidade climática aqui.

“Nossos modelos econômicos atuais são os principais causadores da perda de armazenadores de carbono, do desmatamento, da perda da biodiversidade, do infringimento aos direitos humanos, assim como da perda de valor dos produtores e comunidades locais”, diz Lisa Ferguson, diretora de economias regenerativas da The Nature Conservancy. “E estamos vendo os efeitos—em um planeta mais quente e no desaparecimento ou na mudança em lugares que conhecíamos quando crianças”.

A sociobioeconomia: apoiando comunidades e a natureza

Rosto de uma mulher indígena equatoriana.
SOCIOBIOECONOMIA NO EQUADOR A TNC tem trabalhado lado a lado com povos indígenas e comunidades locais na bacia amazônica para fortalecer projetos sociobioeconômicos. © Sebastian Di Domenico

A questão é: os meios de subsistência tradicionais podem oferecer um modelo econômico que apoie as necessidades financeiras das comunidades e proteja a natureza?

Um conjunto emergente de pesquisas e exemplos vindos das comunidades de todas as partes da região dizem que a resposta é sim. A TNC se refere a esse conceito como socio-bioeconomia—uma abordagem integrada ao desenvolvimento econômico que valoriza a diversidade e o bem-estar das pessoas e da natureza.

Um estudo recente da TNC e parceiros no estado do Pará, na Amazônia brasileira, mostra como esse modelo pode trazer melhores benefícios comunitários, ecológicos e financeiros. O Pará abriga 20 por cento da floresta Amazônica—mas também é responsável por 40 por cento do desmatamento em todo o Brasil, em grande parte impulsionado pela pecuária mal administrada.

Dados econômicos anteriores mostraram que a pecuária no Pará gera R$ 4,25 bilhões anualmente—mais de duas vezes os R$ 1,9 bilhões que as comunidades Indígenas e locais geraram por meio de produtos florestais, como o açaí e cacau, de acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2019.

No entanto, dados do IBGE somente consideraram o valor da produção inicial—eles não analisaram o valor gerado pelas indústrias de processamento locais ou por vendas de produtos, tanto no Pará quanto em outros lugares. Levando esses elementos em consideração, a TNC propôs uma nova metodologia para medir o valor real gerado por produtos florestais no Pará estimando uma contribuição anual de R$ 4,24 bilhões—quase tanto quanto a pecuária.

E dada a crescente demanda global por produtos como o açaí e cacau, os produtos não-madeireiros podem em breve se tornar mais valiosos do que a pecuária, principalmente quando consideramos os serviços ecossistêmicos fornecidos pela floresta, como o armazenamento de carbono.

Bottling a fruit juice.
Açaí No Brasil, a cooperativa indígena UASEI, em Oiapoque, opera uma unidade de processamento de açaí em pequena escala dentro de seu território. © Priscila Tapajowara If Not Us Then Who

In Brazil, the indigenous cooperative in Oiapoque UASEI operates a small-scale açaí processing facility within their territory.

Rastreabilidade bovina

A pecuária não-sustentável é o principal impulsionador do desmatamento—mas não precisa ser. Uma nova iniciativa no estado do Pará rastreia cada etapa de vida do gado de corte para prevenir o desmatamento.

“Na realidade, o estudo da TNC estima que com o incentivo financeiro certo e políticas públicas que apoiam a produção rural, esses produtos poderiam gerar R$ 170 bilhões até 2040, impulsionando as economias locais e melhorando a vida das comunidades”, explica Juliana Simões, gerente adjunta de estratégia de comunicação de comunidades locais e Povos Indígenas da TNC Brasil.

Além de ser ambientalmente sustentável, o sistema socio-bioeconômico é impulsionado pelas comunidades Indígenas e tradicionais da região. Grande parte dos benefícios financeiros dessas empresas ficam com as comunidades locais—principalmente quando essas comunidades detêm as empresas de processamento e distribuição e não apenas a colheita.  

E muitos desses negócios ajudam a preservar as tradições culturais que valorizam e protegem a floresta tropical e outras paisagens—assegurando que a natureza prospere e que o carbono que aquece o planeta permaneça preso nas plantas e solos saudáveis.  

A liderança Indígena e comunitária em toda a Amazônia

A socio-bioeconomia não é somente um conceito abstrato—comunidades Indígenas e tradicionais em todo o Brasil, na Colômbia, no Equador e em outros países amazônicos mostram como esse sistema pode funcionar.

No município de Solano na Colômbia, a Associação dos Conselhos Municipais Murui Muina da Bacia do Alto Caquetá (ASCAINCA em espanhol)—composta pelas comunidades de Aguas Negras, Huitora, Coropoya, El Quince e Ismuina—começou uma nova empresa conhecida como Kabure. Kabure—que significa “sopro de vida”, vende sucos, polpa e geleias feitos da canangucha e outras frutas nativas.

Cinco pessoas posando ao redor de cachos de frutas.
O povo Canangucha El Quince é uma das cinco comunidades indígenas que participam da iniciativa Kabure em Solano, Caquetá. © Meseta Films
Uma bolsa com frutas processadas.
Kabure, sopro de vida da Amazônia O projeto Kabure produz sucos, polpas e geleias a partir de frutas amazônicas. © Sebastian Di Domenico
O povo Canangucha El Quince é uma das cinco comunidades indígenas que participam da iniciativa Kabure em Solano, Caquetá. © Meseta Films
Kabure, sopro de vida da Amazônia O projeto Kabure produz sucos, polpas e geleias a partir de frutas amazônicas. © Sebastian Di Domenico

No Equador, o Povo Kichwa de Rukullakta desenvolveu um programa de aquacultura que cria peixes nativos como uma alternativa à tilápia, que é comumente cultivada, mas é invasiva à região e pode ameaçar os habitats de água doce quando escapam. A comunidade também está cultivando a wayusa, planta nativa tipicamente usada para fazer um chá com alto teor de cafeína e antioxidantes.

A comunidade também está experimentando com indústrias de prestação de serviços, como o ecoturismo, para criar maior abundância de oportunidades de negócios para jovens, diz Samuel Chihuango, o kuraka, ou líder, dos Kichwa. “Estamos buscando alternativas porque nossos jovens estão deixando o nosso território.” 

Mulher com cesto de folhas.
Tradições do Equador As folhas de wayusa são coletadas por mulheres nas chagras e depois preparadas para fazer chá. ©  Sebastian Di Domenico
Bolsa com wayusa processada.
Wayusa processada Esta é uma planta nativa rica em cafeína, conhecida por aumentar a energia, melhorar o foco e oferecer benefícios antioxidantes. ©  Sebastian Di Domenico
Tradições do Equador As folhas de wayusa são coletadas por mulheres nas chagras e depois preparadas para fazer chá. ©  Sebastian Di Domenico
Wayusa processada Esta é uma planta nativa rica em cafeína, conhecida por aumentar a energia, melhorar o foco e oferecer benefícios antioxidantes. ©  Sebastian Di Domenico

Programa Amazônia para Sempre

Muitas comunidades têm modelos de negócios viáveis, mas lhes faltam instrumentos financeiros que podem ajudá-las a transformar pilotos de pequena escala em negócios sustentáveis. Para enfrentar essa lacuna, a TNC e o IDB Invest, sob o âmbito do Programa Amazônia para Sempre, desenvolveram uma Nota de Boas Práticas: “Desenvolvendo uma bioeconomia sustentável e equitativa na Amazônia: um guia de boas práticas para o setor privado” que fornece princípios claros ao setor privado para investir na bioeconomia de maneira responsável. Essa orientação pode ajudar a canalizar mais capital para negócios liderados por comunidades Indígenas e locais de forma a respeitar direitos, reduzir riscos e gerar valor a longo prazo.

Novas oportunidades trazem novos desafios

Criar uma socio-bioeconomia forte requer mais do que apenas visão. Muitas comunidades precisam de capacitação e assistência técnica para transformar seu conhecimento e recursos em empreendimentos lucrativos. Eles também precisam ter acesso a mercados e financiamentos adequados ao seu nível de desenvolvimento, assegurando um crescimento sustentável e equitativo. Tudo isso depende de políticas

públicas que apoiem os direitos e promovam a inovação. Juntos, esses elementos podem criar as condições para que as pessoas e a natureza prosperem.  

O ponto de partida deve sempre ser o apoio às comunidades Indígenas na conquista e manutenção de seus direitos de posse sobre seus territórios—e na capacidade de autogoverno em seus territórios. Qualquer tipo de empreendimento econômico deve estar alinhado à visão da comunidade local e em comum acordo com a maneira como ela quer gerir seus territórios e desenvolver seus recursos naturais.

A TNC trabalha com as comunidades Indígenas na Amazônia há mais de dez anos para assegurar seus direitos às terras e criar planos de gestão territorial para a governança de recursos, incluindo o mapeamento dos recursos que podem apoiar novos negócios.

Outras comunidades podem ter planos de recursos claros e negócios estabelecidos que vendem seus produtos localmente, mas precisam de ajuda para dar escala a suas organizações. A UASEI é um exemplo. O Oiapoque é a única Terra Indígena no Brasil que opera uma unidade de processamento dentro de seu território. Mas a UASEI espera expandir sua produção para atender à crescente demanda internacional pelo açaí—o que também reduziria sua dependência de intermediários e permitiria maior investimento no desenvolvimento local.  

Reconhecendo que eles podem colher o açaí fresco por somente cinco meses do ano, a organização recentemente começou a liofilizar a polpa, que pode ser usada em vários produtos. Eles têm encontrado compradores locais para o produto liofilizado, mas o mercado internacional tem mais potencial—se eles puderem dar escala à sua produção e atender aos padrões de segurança.

“Em dez anos, eu quero a UASEI transportando o açaí liofilizado nacional e internacionalmente”, diz Diese Felicio Batista Palikur, o tesoureiro da UASEI.

Homem no Brasil segura uma planta de açaí para processamento.
Sociobioeconomia no Brasil Após a colheita do açaí pelas comunidades indígenas, ele é preparado para a produção. A UASEI começou a liofilizar a polpa de açaí, que pode ser usada em diversos produtos. © Priscila Tapajowara

Desenvolvendo uma bioeconomia sustentável e equitativa

O desafio agora é garantir que as muitas iniciativas de socio-bioeconomia em toda a Amazônia possam crescer com a escala necessária para atender às necessidades das comunidades Indígenas e tradicionais—e com a rapidez exigida para atender à urgência da crise climática.  

A TNC está trabalhando não só para apoiar as iniciativas já em andamento, mas também para fortalecer políticas públicas-chave— tais como a Política Nacional de Gestão Ambiental e Territorial de Terras Indígenas (PNGATI), a principal política “Indígena” do Brasil que busca assegurar o bem-estar e a proteção territorial. A colaboração com a Rede COIAB (Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira) acelerou o trabalho em toda a Amazônia, criando as condições que permitiram a formação e o crescimento de organizações como a UASEI. 

“Para que a socio-bioeconomia tenha máximo impacto, maior investimento é necessário. Eu frequentemente digo que a ciência está fazendo a sua parte, [e] a sociedade está fazendo a sua parte. Os que precisam fazer sua parte são o governo e as empresas”, diz Marina Silva, Ministra do Meio Ambiente e Mudanças Climáticas.

Essa questão provavelmente será destaque na Conferência do Clima da ONU (COP30), que acontecerá em Belém, no Pará, a cidade conhecida como o “Portão de Entrada para a Amazônia”. Ainda que os formuladores de políticas tenham cada vez mais consciência da importância das comunidades Indígenas na proteção da natureza e combate às mudanças climáticas, “nem sempre correspondemos com investimentos reais nessas pessoas”, diz Leticia Cobello, a líder do programa da TNC para os Territórios Coletivos da Amazônia no Brasil.

“A socio-bioeconomia é uma solução em potencial”, acrescenta Letícia, “mas somente se tivermos apoio para a governança e direitos à terra para que as comunidades possam permanecer em suas terras e prosperar”.

Esse apoio público será crucial. Mas o elemento mais importante ainda é a liderança e exemplos vindos das próprias comunidades Indígenas.