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COP28 evidencia por que precisamos falar de pontos de ruptura da natureza

Por Edenise Garcia

Cachoeira entre árvores na bacia hidrográfica de Piracicaba, na Mata Atlântica.
SACR090218_D006 Cachoeira entre árvores na bacia hidrográfica de Piracicaba, na Mata Atlântica. © Adriano Gambarini

Acabamos de sair de mais uma conferência do clima das Nações Unidas, a COP28, realizada em Dubai. No texto final da conferência, o grande avanço foi a menção da necessidade de transição para o fim do uso de combustíveis fósseis, responsáveis por 75% das emissões globais de gases de efeito estufa. No entanto, palavras apenas não bastam.

Sobretudo num momento em que a população do mundo todo sofre com um aumento sem precedentes na frequência de eventos climáticos extremos e que os riscos de atingirmos pontos de ruptura ou de não retorno (tipping points, em inglês) de sistemas naturais são cada vez mais reais.

Os pontos de não retorno ocorrem quando pressões ambientais, climáticas ou não, levam a mudanças abruptas e/ou irreversíveis de sistemas naturais — oceanos, circulação atmosférica, criosfera (regiões permanentemente cobertas por neve ou gelo), ecossistemas.

A ruptura nesses sistemas maiores afeta sistemas socioecológicos, que, por sua vez, deixam de amortecer riscos e de exercer as funções esperadas. Múltiplos fatores, interações e ciclos de retroalimentação dificultam a avaliação dos limites de ruptura.

Assim, embora alguns cientistas permaneçam cautelosos quanto a projeções de efeitos mais específicos, poucos duvidam de que os riscos de rupturas causadas pelas mudanças climáticas sejam reais e de que devemos intensificar nossos esforços de mitigação e adaptação.

Dois relatórios lançados pouco antes e durante a COP28 – em tradução livre, Riscos de Desastre Interconectados e Pontos de Ruptura Global – reúnem evidências de que estamos no curso para atingir pontos de não retorno negativos em diferentes sistemas terrestres.

Os relatórios abordam também a potencial interação de pontos de não retorno entre si, num efeito dominó, e como eles podem acelerar e ser acelerados por outras pressões humanas, como incêndios florestais e desmatamento. Pontos de ruptura positivos também são indicados.

Consequências reais

Com base em registros das variações climáticas ao longo da história da Terra, além de observações, teoria e modelos computacionais complexos, 25 ameaças de ruptura desencadeadas pelas mudanças climáticas já foram identificadas.

Segundo o relatório Pontos de Ruptura Global, uma avaliação científica compilada por mais de 200 cientistas e liderada pelo Instituto de Sistemas Globais da Universidade de Exeter, na Inglaterra, cinco grandes pontos de não retorno já correm o risco de ser ultrapassados devido ao aquecimento global atual, de 1,2ºC.

Isso pode afetar recifes de coral em diferentes pontos do planeta, as camadas de gelo da Groenlândia e do oeste da Antártida, o permafrost — solo congelado que ocorre no Ártico — e as correntes marinhas subpolares no Atlântico Norte.

Outros três pontos de não retorno podem ser alcançados na década de 2030, ou antes, à medida que o mundo ultrapassa os 1,5°C de aquecimento global em relação aos níveis pré-industriais, com impactos na floresta boreal, em manguezais e em fazendas de algas marinhas. Além desses sistemas, geleiras em diferentes continentes, savanas e terras áridas e as monções da África Ocidental também estão sob ameaça.

Para piorar esse cenário, a ruptura de alguns sistemas ocasionada pelo aquecimento global pode, num mecanismo de retroalimentação, contribuir para o aumento da temperatura média global. Isso ocorre, por exemplo, devido à diminuição da reflexão dos raios solares e maior absorção de energia pelas superfícies marinhas e terrestres, no caso de derretimento das camadas de gelo polares, ou pelo aumento da emissão de metano e dióxido de carbono (CO2) associado à perda, respectivamente, do permafrost e da Floresta Amazônica, onde esses elementos são armazenados em grande escala.

Por outro lado, o desencadeamento de pontos de ruptura pode afetar severamente os sistemas de suporte à vida do nosso planeta e a estabilidade de muitos países. O colapso da circulação do Atlântico Norte combinado com o aumento da temperatura pode impactar negativamente metade da área mundial destinada ao cultivo de trigo e milho.

Ou, ainda, eventos frequentes de secas extremas podem acentuar a pressão sobre a água doce armazenada em aquíferos – reservatórios subterrâneos que fornecem água potável e que são fundamentais para a irrigação voltada à produção de alimentos, principalmente em regiões áridas.

Mais da metade dos principais aquíferos do mundo estão se esgotando mais rapidamente do que podem ser reabastecidos naturalmente e, devido às mudanças climáticas, a situação tende a piorar, ameaçando a segurança hídrica de cerca de 2 bilhões de pessoas.

Além disso, a falta de água para irrigação não apenas gerará a perda dos meios de subsistência de milhões de agricultores, mas também pode colocar em risco sistemas inteiros de produção, exacerbando a insegurança alimentar ao redor do mundo.

O alcance do ponto de não retorno de alguns sistemas naturais pode ser acelerado ou ocorrer mesmo sob menores condições de aquecimento global devido a outras pressões humanas.

Amazônia é um exemplo de convergência de crises climática e ecológica. Se o aumento da temperatura média global atingir os 2°C, a floresta estará ameaçada. Mas o ponto de ruptura da maior e mais biodiversa floresta tropical do mundo pode se antecipar se os índices de desmatamento e fogo atuais não diminuírem drasticamente.

O relatório Riscos de Desastres Interconectados de 2023, lançado em outubro pelo Instituto para Segurança Ambiental e Humana, da Organização das Nações Unidas, avaliou seis pontos de risco de ruptura interligados, imediatos e crescentes em todo o mundo. Os pontos identificados, todos com potencial de impactar milhões de vidas, são:

  • aceleração de extinções de espécies devido à perda de habitats;
  • esgotamento das águas subterrâneas, risco de seca e escassez de água;
  • derretimento das geleiras das montanhas;
  • detritos espaciais gerados pela perda de satélites;
  • crescente número de locais que podem se tornar inabitáveis devido a temperaturas elevadas;
  • e aumento de residências que não são asseguradas em função dos desastres climáticos.

As mudanças climáticas contribuem – em muitos casos, em associação com a pressão demográfica – com cinco desses seis riscos, com a óbvia exceção dos detritos espaciais.

A parte que nos cabe

No complexo cenário de pontos de ruptura que está sendo desenhado, não dá mais para considerar soluções lineares e simplistas, em que cada problema é tratado individualmente.

Prevenir essas rupturas – e de forma equitativa, considerando as populações mais vulneráveis – deve tornar-se o objetivo e a lógica centrais de um novo quadro de governança global, a partir de uma perspectiva sistêmica.

A prevenção só será possível se a sociedade e a economia forem transformadas para rapidamente reduzir emissões e restaurar a natureza. Ações concertadas, que resultem em pontos de ruptura positivos, em que mudanças desejáveis se tornem autopropulsoras, são essenciais para se alcançar a tempo as transformações necessárias e evitar os pontos de não retorno.

Entre essas ações estão políticas públicas abrangendo setores com altas emissões de gases de efeito estufa; mudanças comportamentais; adoção massiva de energias renováveis; além da efetiva transição para o fim do uso de combustíveis fósseis anunciada na COP28.